quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Escrava moderna

Dediquei a vida aos meus filhos.
Apaguei-me. Deixei de existir.
O cabelo cresceu, embaraçou-se, perdeu a cor. Não importava.
Até ao dia em que tudo ruiu e eu precisei de deixar os filhos porque o trabalho que fazia a partir de casa, deixou de existir.  E assim me tornei numa escrava dos tempos modernos. Mas a quem os pais dizem "se queres alimentar a tua família, tens de aceitar. A vida é assim mesmo".

Nos dias em que faço a manhã, não consigo dormir na noite anterior. Sou a única. Se não chegar, ficam 3, 4, 10 pessoas à espera que lhes sejam prestados serviços por alguém que não compareceu.
Então, tenho medo, muito medo de não ouvir o despertador, de adormecer. Por isso não durmo. Dou voltas toda a noite até desistir muito antes do  despertador tocar.

Levanto-me devagarinho ainda de noite (muito de noite) para não acordar os filhos. Visto-me e como qualquer coisa. Entretanto eles acordam e choram porque não querem que me vá embora. Já atrasada, porque tive de os consolar, lá sigo para o trabalho. Às vezes vejo o nascer do sol, outras nem o sol chego a ver. Entro no trabalho. Faço de tudo: limpo, lavo, sirvo, faço contabilidade, apoio ao cliente e admnistração. Tudo isto pelo salário mínimo. O horário devia ser até às 7h, 8h, 9h da noite ou até à meia noite se for preciso. Não há horários. Entra-se quando se entra e sai-se quando se sai.
Consegui arranjar forma de dividir o dia com uma colega. Recebo metade claro, mas pelo menos vejo os meus filhos.

Saio ao início da tarde e consigo ir buscá-los à escolinha ( na semana passada prometi-lhes que os ia buscar mas tive uma entrevista de última hora e falhei, eles ainda não me perdoaram). Chego a casa e tento que se entretenham um pouco sozinhos porque o meu antigo trabalho, que basicamente já ninguém paga, ainda ocupa tempo. Tenho uns 20 emails para responder, problemas para resolver. Despacho tudo mas rapidamente as crianças começam a ficar com fome e sono. Entramos na rotina do fim da tarde/noite. Adormeceram.... e eu estou exausta. Tento dormir também.
O meu filho anda constipado há uns dias e hoje começou a tossir. Pressinto outra crise respiratória. Ele não dorme, nem eu. Noite a Ventilan. Ora tento que durma ao meu colo, ora lhe coloco uma almofada para o elevar mas a tosse não dá tréguas. Levanto-me às 6h da manha para o levar ao hospital. Saímos de casa de noite.
No hospital não fazem nada desta vez (da última ficámos internados 3 dias). Está só no início, é fazer Ventilan e esperar que não piore. A minha experiência como mãe do meu filho diz-me que daqui já não melhora só com Ventilan mas que posso fazer? Os livros médicos ditam procedimentos iguais para todos.

Ainda não são 9h. Levo-o à escola ou não? Sou uma mãe que não leva filhos doentes para a escola nem que seja só um "bocadinho". Mas ele não está propriamente doente, adora a escolinha e em casa aborrece-se.
Decido leva-lo. Vou a casa buscar a minha filha que ainda nem está vestida. Como qualquer coisa porque ainda não tive tempo de o fazer e levo-os ao infantário. Ficam os dois a chorar. Indicações à educadora sobre o medicamento e saio a correr porque tenho uma entrevista às 10,30. Um trabalho que não me vejo a fazer, não porque não goste mas porque não acho que tenha aptidão. Mas estou desesperada. As contas não se pagam sozinhas.

Impossível estacionar, A cidade está toda impedida por ramagens e árvores partidas pelo furacão.
Lá estaciono já numa pilha de nervos porque não me quero atrasar. Mas o escritório está fechado. Ligo e volto a ligar, espero quase 1h e ninguém aparece. Volto para casa (mais 20min de viagem e gasóleo que está cada vez mais caro - não sei como vou encher o depósito) e almoço qualquer coisa a correr porque entro logo a seguir para fazer tudo novamente pelo salário mínimo. Hoje até às tantas. Provavelmente já nem vejo os meus filhos e sei que, pelo menos o mais pequenino, não vai querer adormecer sem mim.
Mas tudo isto é normal em Portugal. Tudo isto é aceitável e desejável até. Quem me dera emigrar outra vez.

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